NOTÍCIA

20/09/2020
Em decisão inédita no Brasil, Justiça do Rio autoriza certidão de nascimento com registro de ‘sexo não especificado’

O simples preenchimento de um formulário costumava setransformar em um grande transtorno para Aoi Berriel, de 24 anos. Ela sempreesbarrava no mesmo problema: ter que escolher entre os gêneros feminino emasculino para finalizar o cadastro, o que se recusava a fazer. Há cerca deseis anos, após mergulhar em estudos sobre questões de gênero e sexualidade,Aoi passou a se reconhecer pessoa não-binária, que não se identifica como sendodo sexo feminino nem masculino ou identifica-se com ambos. No fim do mêspassado, ela conseguiu uma decisão inédita: a Justiça do Rio a autorizou a terem sua certidão de nascimento “sexo não especificado”. O pedido foi feito pelaDefensoria Pública do estado.

 

Aoi procurou a Defensoria em 2015, inicialmente para fazer amudança de nome. Informada sobre a possibilidade de pleitear ainda a alteraçãono gênero, não teve dúvidas de que também desejava fazer o pedido.

 

— Geralmente, quando estou debatendo essa questão (degênero) com alguém, a primeira coisa que a pessoa faz é dizer que devo meidentificar da forma que consta dos meus documentos. Só que tudo ligado aogênero masculino me remete a algo opressivo. Fui pressionada a vida inteira a teruma masculinidade com a qual não me identificava — explica Aoi, que optou porser chamada por pronomes femininos.

 

A defensora pública Letícia Furtado, coordenadora do Núcleode Defesa dos Direitos Homoafetivos (Nudversis) afirma não ter conhecimento de umadecisão como essa no país e ressalta que servirá como precedente para queoutras pessoas não-binárias recorram ao Judiciário.

 

— Fomos educados a entender que devemos ser homens oumulheres por conta dos fatores reprodutivos. Todo nosso sistema é binário. Asmudanças que vêm ocorrendo são porque a sociedade vem mostrando essa gama decomportamentos diferentes, que não tem que ser uma coisa ou outra. Essaspessoas precisam ter seus direitos reconhecidos sem qualquer limitação, emrespeito aos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana — defende.

 

Juiz considerou a ‘dignidade da pessoa humana’

 

Em sua sentença, o juiz Antonio da Rocha Lourenço Neto, da1ª Vara de Família da Ilha do Governador, afirma que “o direito não podepermitir que a dignidade da pessoa humana do agênero seja violada sempre que omesmo ostentar documentos que não condizem com sua realidade física epsíquica”. O Ministério Público estadual deu parecer favorável ao pedido deAoi.

 

Com um pai militar da Aeronáutica, Aoi carrega em suaslembranças que desde a infância já não se identificava com os gêneros masculinoou feminino. Mas a rigidez das regras impostas em sua casa não lhe deu espaçopara refletir sobre seu gênero e suas preferências sexuais. No fim daadolescência, sentiu-se à vontade para fazer as reflexões que sempre lherondaram. Encontrou resistência principalmente do pai, de quem acabou sedistanciando.

 

Extra Digital

 

Nessa fase, Aoi optou por cursar Ciências Sociais, com ointuito de se aprofundar nas questões de gênero. Foi só então que seidentificou como pessoa não-binária.

 

— Essa investigação sobre mim mesma doeu, mas me deixoumuito mais confortável. Foi um momento em que me permiti explorar sobre meugênero e, por isso, tenho muita certeza das minhas escolhas. Isso tudo melhoroumuito minhas relações interpessoais, pois passei a ser quem eu queria ser e nãoaquilo que esperavam de mim — relata, acrescentando que o processo também foide aceitação para o pai, com o qual tem um excelente relacionamento atualmente.

 

Enquanto aguardava a decisão judicial, Aoi passou a adotarcomo nome social aquele que agora vai constar de seu registro de nascimento.Desde março, no entanto, já não é mais necessário entrar com qualquer processona Justiça para fazer a modificação, que pode ser realizada no própriocartório.



Fonte: https://extra.globo.com/noticias/rio/em-decisao-inedita-no-brasil-justica-do-rio-autoriza-certidao-de-nascimento-com-registro-de-sexo-nao-especificado-rv1-1-24649959.html

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